sábado, 22 de maio de 2010

Meus Professores da Arte de Bem Viver (I)

Hoje (2010), em pleno século XXI, é bem compreensível a discussão em torno da tolerância religiosa, embora com muita resistência ainda. Os tão famigerados anos 2000 persistem com a tola idéia da supremacia de um pensamento religioso sobre o outro, sob chuvas de críticas e ataques que estimulam a dissensão entre seres humanos, filhos da mesma origem. Tudo paradoxal com o maior grau de escolaridade e esclarecimento experimentados atualmente na sociedade brasileira.



Imaginem a cinquenta anos atrás? Quanto preconceito? Contudo, vou lhes contar uma história de grandeza moral, que tive o privilégio de conviver.



Minha infância foi vivida em Irajá e morava com meus pais nos fundos da casa de minha avó paterna, Dona Áurea Tavares do Amaral, quantas saudades! Minha avó era mãe-de-santo, seu terreiro era em Coelho da Rocha, no antigo Estado do Rio de Janeiro. Naquele tempo ir até lá era uma odisséia. O ônibus nos deixava na estação de Coelho da Rocha e tínhamos que ir a pé até o terreiro na rua Belkiss, entre valas negras de um lado e outro.Não foi uma vez que vi uma filha-de-santo cair nas valas com suas indumentárias vaidosamente brancas e engomadas.



Já ao lado de nossa casa em Irajá morava uma família de evangélicos ( Assembléia de Deus). Lembro-me do nome das duas senhoras: Ciriaca e Gregota, sogra e nora, respectivamente .E, talvez, pela dificuldade dos nomes, nós as tratávamos pela alcunha de “vizinha”. Quando em minhas estripulias de criança, me descuidava, e o brinquedo era arremessado para sua casa, lá eu me punha pendurado no muro a gritar: “vizinha”,”vizinha”, e uma delas pacientemente pegava o objeto para me devolver a alegria.



Eram tempos tão difíceis de rigor e conservadorismo segundo os padrões impostos pela religião dominante. Lembro-me que aos cinco anos, ao ingressar no curso de alfabetização do Instituto Irajá, minha mãe me recomendou: “ Se perguntarem sua religião diga que é católico,não diga que somos umbandistas”. Isto denunciava seu medo de que eu fosse discriminado pela rejeição que se estendia aos participantes dos cultos afros.



Todavia, não era isto que eu via entre minha avó e a vizinha. Pessoas simples, mas dotadas de um comportamento ético na convivência.Nunca se ouviu qualquer referência menor de ambos os lados sobre a prática religiosa da outra. E tudo culminava na grande festa de Crispim e Crispiniano ( tipo Cosme e Damião), em 25 de outubro. Esta era a única vez que minha avó e seus filhos-de-santo comemoravam seus rituais em Irajá.Uma multidão de adultos e crianças acotovelados em frente de nossa casa, para se deliciarem de tantas guloseimas, e mais de 1000 sacos de doces que eram distribuídos, e depois disto a macumba que ocorria em minha casa, nos fundos.



No dia seguinte, em meio aquele cheiro que misturava doces e flores ( não me sai da memória olfativa), minha avó começava o “ritual” da divisão das sobras . E nunca esqueceu de preparar um prato de todas as iguarias para nossas vizinhas, que eram chamadas ao muro para lhes ser entregue carinhosamente, e que era recebido sempre com muita simpatia e educação por parte delas.Não posso assegurar, por falta de comprovação, se as vizinhas comiam, ou não, o que lhes era oferecido, mesmo por razões religiosas, mas recebiam de forma cordial, e nunca foi visto elas se desfazerem de forma ostensiva, com intuito de demonstrar que não se abasteceram daquele tipo de oferta.



Esta foi a conduta entre minha avó, macumbeira, e as vizinhas,evangélicas, até o fim.Mulheres.Incultas.Pobres.Viveram em tempos de maior segregação religiosa, mas por serem autênticas e valorosas não se deixaram contaminar, pelo contrário, estabeleceram na esfera de suas influências o traço do respeito e consideração entre si, ensinando-me que a alguns a religião eleva, e outros dignificam o meio religioso a que pertencem. Este último é o caso dessas três exemplares mulheres.



Meu preito de gratidão a estas geniais professoras da Vida.

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